A partir da década de 70, percebe-se no país alguns movimentos de crítica ao modelo hospitalocêntrico no que se refere à assistência psiquiátrica. A violência nos manicômios e a exclusão já eram pautas de discussões que reivindicavam os direitos do doente mental. Os principais questionamentos se relacionavam à natureza do modelo privatista e à sua incapacidade de produzir um atendimento que contemplasse as necessidades de seus usuários. Entretanto, ainda não havia um modelo de cuidado muito claro e nem uma proposta estruturada de intervenção clínica.
Foi só na década de 80 que o movimento pela reforma psiquiátrica, no Brasil ganhou importância, tanto política como social. Tal período, marcado pelo final da ditadura, abriu a possibilidade de mudanças no setor da saúde e permitiu a participação de outros setores, que não os médicos, nesse processo. Ganhou ênfase também uma série de críticas às noções de clínica e cidadania, ambas ancoradas em uma concepção universal de sujeito, em que a normalidade deveria ser reconstituída. Para Birman (1992), a construção de um novo espaço social para a loucura exigia que a noção de cidadania e a base do saber psiquiátrico fossem colocados em debate. Era preciso inventar novos locais, instrumentos técnicos e terapêuticos, como também novos modos sociais de estabelecer relações com esses sujeitos.
Nessa trajetória, a influência da psiquiatria democrática italiana, a partir de meados dos anos 80, ganhou força no país. Este movimento propunha o questionamento da suposta universalidade do racionalismo científico das psiquiatrias, desvelando sua pretensa neutralidade. Novos protagonistas, como usuários e familiares, aumentaram o coro de reivindicações por outras possibilidades de atenção, espaços e avanços técnicos. Corroboraram esta tendência, a implementação de experiências de hospitais-dia; a inserção do movimento psicanalítico em vários setores, a realização da 1ª Conferência Nacional de Saúde Mental no Rio de Janeiro, em 1987, considerada um marco histórico na psiquiatria brasileira; a criação do Centro de Atenção Psicossocial Professor Luiz Cerqueira, em São Paulo, no mesmo ano; a intervenção, em 1988, na Casa de Saúde Anchieta, em Santos e o Projeto de Lei do deputado federal Paulo Delgado.
Nos anos 90, assistimos a criação e consolidação de propostas como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS), Lares Abrigados, etc., embora, desde os anos 80, algumas experiências já estivessem sendo desenvolvidas (Venancio, 1990) e apesar do fato dos hospitais psiquiátricos ainda absorverem a maior parte das verbas destinadas à assistência em psiquiatria (Alves, 1994). A esta década parece ter ficado o papel de, efetivamente, implementar novos dispositivos, sem perder o compromisso da reflexão e do fluxo constante de avaliações, sem os quais corre-se o risco de produzir novos enclausuramentos e novas hegemonias.
Algumas Reflexões Sobre o Conceito de Autonomia
A palavra autonomia é originada do grego para designar a capacidade de um indivíduo de se autodeterminar, de se auto-realizar, de autos (si mesmo) e nomos (lei). No Dicionário encontramos: autonomia. sf 1. qualidade ou estado de autônomo, independente, livre. Autonomia. 1. faculdade de se governar por si mesmo. Autonomia significa então auto-construção, autogoverno. A discussão travada em torno deste conceito é recente e encontra-se em outras instâncias da sociedade como autonomia na escola, autonomia operária, autonomia institucional. Contudo, no campo da saúde mental o conceito parece recobrir-se de sentidos imprecisos. Como lidar com este tema quando se trata de sujeitos destituídos de todo e qualquer valor ao receber o atributo de doente mental? Outra pergunta que pode ser feita é se as instituições que utilizam novos dispositivos assistenciais, contrários àqueles do tradicional manicômio, propiciam a produção de autonomia para os usuários que se beneficiam do tratamento?
Parece que o ponto nodal está em definir o que pode ser entendido como autonomia para nós e para a clientela assistida. De acordo com Leal a produção de autonomia pode ser caracterizada em duas vias: Primeiro o abandono da expectativa de resolutividade e eficácia a partir da comparação com o nosso desempenho; e segundo a criação de outras possibilidades de vida a partir deste outro padrão de subjetivação (Leal, 1994:153). Outra questão diretamente interligada ao tema diz respeito à possibilidade de repensar o processo de cura em psiquiatria a partir da discussão de uma autonomia possível. Dessa forma, entra em cena também a polêmica entre autonomia e tutela. Segundo Delgado (1992), todo cuidado implica um grau de tutela, todo serviço de caráter protetivo, tem a função de tutela. Entretanto, as atuais modalidades assistenciais não visam mais a adequação a um padrão único de subjetividade, seu sentido sendo bastante diferente daquele instituído pela clínica clássica.
Pode-se observar que no Brasil, a tradição de pesquisa sobre a produção de autonomia é ainda muito recente, principalmente na área com a qual estamos lidando. Um dos impasses é como avaliar ou quais critérios eleger para que a realidade possa ser retratada sem que seja reduzida a padrões universalizantes e reducionistas. Observa-se atualmente, a realização de alguns estudos (Pitta, 1997) sobre o assunto pautado na definição e avaliação de critérios chamados pragmáticos e apragmáticos, como autonomia para higiene, alimentação, medicação, ir e vir, trabalho e relações sociais (família, amigos, grupos sociais). No entanto, quando se trata de uma clientela específica como é o caso dos sujeitos psicóticos, a adoção de tais critérios não nos parece suficiente.
Assim, uma concepção possível para autonomia seria pensá-la como o momento em que o sujeito passa a conviver com seus problemas de forma a requerer menos dispositivos assistenciais do próprio serviço. Assim, caberia à instituição funcionar como um espaço intermediário, um local de passagem, na medida em que possibilitaria aos usuários um aumento de seu poder contratual, emprestando-lhe, segundo Tykanori (1996), sua própria contratualidade. Importa menos, neste sentido, criar e impor critérios de autonomia para esta clientela, mas observar qual seria o lugar ocupado pela questão no interior de uma nova perspectiva de atenção à loucura, como a instituição a concebe e promove no cuidado de seus usuários.
Fonte:
Núbia Schaper SantosI, *; Patty Fidelis de AlmeidaII, **; Ana Teresa VenancioIII, ***; Pedro Gabriel DelgadoIII, ****
I Universidade Federal de São Carlos
II Escola Nacional de Saúde Pública / Fundação Oswaldo Cruz
III Núcleo de Pesquisa do Instituto Franco Basaglia - RJ
A autonomia do sujeito psicótico no contexto da reforma psiquiátrica brasileira
SERVIÇO RESIDENCIAL TERAPÊUTICO: o olhar a partir do processo de desinstitucionalização de pessoas com transtornos mentais
Patrícia Ferreira de Lima
Rumos da saúde mental frente aos desafios do SUS
Desinstitucionalizar é ultrapassar fronteiras sanitárias: o desafio da intersetorialidade e do trabalho em rede
Nos últimos anos é visível como a reforma psiquiátrica vem avançando no país, desde discussões mais afinadas acerca dos fundamentos históricos e conceituais da proposta de reforma em curso, até a análise crítica de seus principais dispositivos de intervenção, das conquistas e dos impasses que trabalhadores, gestores, usuários e familiares têm enfrentado no sentido de fazer avançar processos de desinstitucionalização requeridos, mas não garantidos, pelo aparato jurídico/estrutural da legislação vigente.
É possível reconhecer também que há uma sensibilidade mais aguçada que nos leva a reconhecer que a reforma psiquiátrica está articulada à produção de novos modos de subjetivação, pressupondo práticas de cuidado diversas das predominantes no modelo asilar, bem como a ruptura da lógica tutelar a ele associada. Esse reconhecimento parte do pressuposto de que a loucura se encontra confinada em saberes e instituições psiquiátricas, e em função disso, as inúmeras possibilidades da loucura enquanto radicalidade da alteridade são reduzidas a um único significado: doença mental.
Sabemos, portanto, que daí derivam as práticas de controle, tutela, domínio, normatização e medicalização, tão evidentes em nosso cotidiano. A manutenção dessas práticas, a produção de novas formas de controle cada vez mais sutis e eficazes, assim como a dificuldade de produzir interferências nesse âmbito, tudo isso vem sendo descortinado dia após dia. Queremos mudar, mas esse querer vai sendo enfraquecido, pois também está atravessado por uma lógica, aqui entendida como marcas invisíveis que produzem formas de subjetivação, que se expressa através de um desejo em nós de dominar, de subjugar, de classificar, de hierarquizar, de oprimir e de controlar a vida (Machado e Lavrador, 2001). Trata-se, pois, de uma cultura manicomial, dos nossos manicômios mentais (Pelbart, 1990). Isso indica claramente que a reforma psiquiátrica não se restringe a uma ordem macropolítica. Clausuras subjetivas nos habitam e são muito poderosas.
Acreditamos que há também lampejos em nossa compreensão atual de que não é para recuperar socialmente nem para retomar a normalidade perdida que a luta antimanicomial deveria operar, mas produzir novas formas de sociabilidade, reorientar nossas vidas a partir da mistura de diferentes códigos, romper os sentidos de mundo que a época nos impõe, produzir fissuras na ordem mundial, na hegemonia, na monotonia, constranger as linhas de força que operam hegemonicamente e que nos faz cada vez mais silenciosos, obedientes, dóceis e conformistas.
Com base nesses princípios tentamos contribuir com o debate nacional gerando interlocução com atores sociais envolvidos na luta antimanicomial que produzem interferências decisivas nos rumos do processo de reforma psiquiátrica. Esses atores, independente da condição de gestores, pesquisadores, trabalhadores de saúde mental, usuários, familiares, etc, constituem um coletivo que insiste na sustentação de uma utopia e na não conformação com as atuais promessas enganosas do hospital psiquiátrico humanizado, reformado, maquiado (Amarante, 2007).
Nesse intuito, queremos “botar lenha” na utopia, fomentar estratégias de resistência e criação no campo da saúde mental que venham ampliar nossa capacidade de análise e intervenção junto aos coletivos de trabalho, assim como contribuir para a produção de novos modos de operar a política de saúde mental que sustente e faça avançar a luta antimanicomial. Consideramos que para fazer um movimento social amplo e complexo acontecer, tal como se apresenta a reforma psiquiátrica, precisamos empreender uma guerra contra essa política de subjetivação que exige consensos, razoabilidade e, em contrapartida, promete segurança, bem-estar, pacificação, conforto, operando pela via do medo e da esperança.
É necessário para tanto operar críticas em dois âmbitos: um questionamento no campo científico, no qual a loucura enquanto doença mental é produzida pelo saber psiquiátrico, tendo um arcabouço técnico para tratá-la, e de outro, no âmbito da configuração social, onde as práticas científicas e os ideais modernos sustentam as formas de enclausuramento e silenciamento da loucura.
Fonte: Magda Dimenstein Mariana Liberato - Universidade Federal do Rio Grande do Norte/UFRN (Revista Brasileira de Saúde Mental, Vol 1, no1, jan-abr. 2009 )
Ah, eu tô maluco! O Hospital Psiquiátrico de Jurujuba não sairá do meu coração
Desinstitucionalização no contexto neoliberal brasileiro
Fonte: Um Jogo em Aberto: Cidadania dos Portadores de Transtorno Mental
Os brasileiros se entopem de Rivotril
Dependência ocorre após 3 meses, segundo psiquiatra
Folha – A que o sr. atribui esse aumento do uso de Rivotril?
Ronaldo Laranjeira – Temos uma vigilância sanitária muito falha no Brasil. Duvido que essa quantidade de prescrição seja legítima. Nos países desenvolvidos, a tendência é de diminuição dos benzodiazepínicos. A prescrição médica é mais rigorosa e fiscalizada, o que não acontece por aqui. É curioso saber também por que o Rivotril se destaca entre todos os benzodiazepínicos, coisa que não acontece lá fora.
A gente pensa em algum conluio, em alguma colaboração da própria indústria com esse mercado ilegítimo ou cinza de venda do medicamento. Mas é só suspeita.
Sem dúvida. A falta de controle na fiscalização e o baixo preço facilita o uso de qualquer droga. Por que no Brasil os opiáceos não são problema? Porque o controle é rigoroso e o preço é alto.
Eles são hoje a principal causa de queda em idosos nos EUA. Os profissionais têm medo de prescrever e ser processados depois. Também não há indicação médica para seu uso regular. A maioria dos usuários no Brasil são crônicos, dependentes, às vezes de baixa dose. A pessoa pode ficar dependente e não necessariamente fazer uma escalada da droga. Pode usar um comprimido de Rivotril por dez, 20, 30 anos e ficar só naquela dose.
Em quanto tempo a pessoa se torna dependente
Em geral, após três meses.
Tem que ir diminuindo aos poucos a dose, por um período de seis semanas. Se parar de uma vez, tem risco de convulsões, de mal-estar. Mas, se a pessoa tem outros transtornos, precisa de avaliação.
A ação do tranquilizante