ALGUMAS LIMITAÇÕES NO TRABALHO COM A FAMÍLIA DE BAIXA RENDA - Parte 2

No dia-a-dia da abordagem com a família, vários riscos permeiam a atuação do profissional. O primeiro é ele se dispor a fazer um trabalho com a família sem o devido preparo teórico-metodológico e ético. Nesse sentido, ele pode se sentir como “doutor em família”, por ter vivido e sofrido a vida toda a influência das relações familiares. Desse modo, “naturalmente”, pode acreditar que entende de família.

A ação conjunta de dois ou mais profissionais de diferentes categorias também pode trazer problemas. Se todos não tiverem preparo mínimo e maturidade, podem reproduzir conflitos que a família vivencia. Podem entrar em um jogo de disputa por competência ou para angariar a simpatia da família.


É comum em um serviço de saúde, até em um CAPs, a família sentir que não foi atendida se não falar ou passar por uma consulta com um psiquiatra, mesmo tendo sido assistida por todos os demais profissionais da equipe de nível superior. Às vezes, a atuação desses profissionais é mais intensa com os cuidadores domésticos, mas é comum, em reuniões ou assembléias, estes elogiarem ou reconhecerem publicamente apenas a ação médica.

Em muitos serviços, além dos vínculos precários de trabalho e dos baixos salários, há um baixo nível de recompensa simbólica, como o reconhecimento pelo trabalho realizado, que os profissionais esperam e muitas vezes não têm, da parte dos cuidadores domésticos. Não é rara a decepção e a fala indignada de profissionais que não se sentem reconhecidos. É preciso maturidade, bom senso e, acima de tudo, comportamento ético para enfrentar essa situação.

Os conflitos interprofissionais também podem ser reproduzidos na intervenção com os familiares/cuidadores, quando os profissionais querem apresentar soluções e mostrar-se úteis para a família. Muitas vezes as disputas acabam reproduzindo conflitos vivenciados entre os membros de cada grupo familiar. A carência afetivo-simbólica do profissional pode acabar se sobrepondo às necessidades das pessoas e grupos vulnerabilizados.

É necessário muita auto-vigilância nas práticas com a família. O espaço das supervisões é fundamental para equacionar divergências entre categorias profissionais e para apontar conflitos interpessoais. Outro aspecto importante é a relação com famílias de baixa renda. Poucos profissionais são capacitados academicamente para trabalhar com a família e, quando o são, parte significativa está preparada para lidar apenas com a família de classe média, de consultório, em uma realidade próxima à de sua experiência pessoal.

Nesse contexto, quando o profissional olha para a família dos segmentos de baixa renda, em estado de crise, muitas vezes só consegue ver desorganização, desestruturação. Mas é justamente nessa situação que ela busca um profissional ou um serviço de saúde mental. O profissional está pouco habituado a entender códigos culturais, lingüísticos e comportamentais que não sejam os de sua classe social, confundindo pobreza econômica e material com pobreza cultural.

Os familiares/cuidadores, em geral, trazem para os profissionais e serviços de saúde, além da crise psiquiátrica, todos os seus problemas existenciais. A crise psiquiátrica apenas intensifica os dramas vividos pelas famílias, vulnerabilizadas pelo contexto de pobreza e exclusão/destituição social.

Nessas circunstâncias, o profissional corre o risco de só ver pobreza e impotência, ficar paralisado como a família e não vislumbrar outras possibilidades. Na crise, o grupo familiar costuma mostrar toda sua fragilidade, mas podem também aflorar capacidades que às vezes não se consegue identificar. É o momento em que o profissional pode observar a dinâmica familiar de forma exponenciada, na solidariedade ou na ausência dela, nas tentativas de encontrar saídas, nos recursos ou na falta deles. É também o momento de observar se a família conta com uma rede social com oportunidades para obter suporte.

Diante da família em crise e que quer transferir a resolução de seus problemas para aqueles que “estudaram e entendem disso” (do cuidado com o PTM”), é comum o profissional se ver diante do dilema de ter que dar uma resposta, seja qual for, até para aliviar sua própria angústia ou demonstrar competência para lidar com o caso que tem diante de si.

Para o médico, parece ser mais tranqüilo prescrever uma medicação ou requisitar um exame. Para os demais profissionais, existe a tendência de utilização dos recursos da comunidade, que muitas vezes assume uma postura de transferência de responsabilidade, e não de compartilhamento de soluções. A família cuidadora coloca o profissional como o solucionador de problemas familiares, e muitos profissionais incorporam tal encargo.

Ao assumir o exercício da profissão como “doutor”, a atenção pode deslizar para uma atitude autoritária, caso o profissional considere que sabe tudo e, por isso, pode tudo resolver, sem dialogo e interlocução com a família/cuidador, tendo uma resposta para todas as questões, a fim de se manter nesse lugar. Essa atitude autoritária permeia as intervenções e coloca o profissional como única pessoa capaz de solucionar os problemas. Daí também a prática do “aconselhamento” ser generalizada. Freqüentemente o profissional acha que sabe o que é melhor para todas as famílias que chegam a seu consultório/serviço ou se encontram sob sua responsabilidade.

Nesse horizonte, é importante registrar as reações do profissional, ao se deparar com o grupo familiar e seus problemas. Cecchin (2000, p. 73) aponta cinco respostas básicas do profissional em relação à família:
• ele tem necessidade de se tornar útil para a família. Nesse cenário, quanto mais é útil, mais a família se sente inútil, desamparada e impotente, pois não constrói novas soluções para seus problemas;
• alguns se colocam como professores, prescrevendo comportamentos, “aconselhando” sem a família/cuidador ter solicitado. Nesse sentido, quanto mais for professoral, menos a família/cuidador aprende e menor qualidade interacional existirá entre ambos;
• o profissional deseja controlar o grupo, disciplinar o processo interativo, deixando os membros dependentes ou apáticos;
• o profissional quer proteger as pessoas, percebidas por ele como desorganizadas, infelizes, desestruturadas, e toma para si a tarefa de reorganizar e cuidar do grupo. Nesse sentido, não há um aprendizado do grupo na resolução de seus problemas;
• o profissional manifesta, consciente ou inconscientemente, o desejo de punir a família quer dar uma lição a quem ele considera um mau marido, má mãe, má filha, mau cuidador.
Nas formas acima esboçadas de oferecer resposta ao grupo familiar/cuidador, o profissional arrisca-se a exercer a cruel compaixão (Szasz, 1994), pois, sob pretexto de auxiliar o grupo a sair de sua crise, substitui o papel dos membros da família, subtrai a competência própria da família, desconsidera os recursos e a necessidade da família de construir sua história e sentir-se suficientemente capaz para resolver suas questões.

Assim, como visto, embora permeado por limitações, o trabalho com a família nos remete a reflexões que podem apontar possibilidades e desafios.

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Lançamento do livro Karl Marx e Subjetividade Humana - Eduardo Mourão Vasconcelos

Marcelle, prazer tê-la como aluna e amiga. (assim na dedicatória)

Léa, prof. Rita Vasconcelos, eu e Lili representando a graduação da UFRJ.

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ALGUMAS LIMITAÇÕES NO TRABALHO COM A FAMÍLIA DE BAIXA RENDA

Trabalhar com famílias de baixa renda implica lidar com várias limitações, decorrentes sobretudo de dupla estigmatização: a de serem pobres, em uma sociedade que só recentemente, depois da Constituição de 1988, reconheceu formalmente os pobres como cidadãos detentores de direitos; e de terem em seu meio um portador de transtorno mental, enfermidade carregada de imagens de periculosidade e incapacidade.

O deslocamento do familiar/cuidador até o serviço assistencial psiquiátrico, no geral, é complicado para esse segmento social, tendo em vista suas dificuldades econômicas, que o obrigam muitas vezes a andar a pé ou de bicicleta. Contudo, grupalizar os familiares cuidadores parece ser uma estratégia interessante, por propiciar a troca de experiências e mostrar que é possível conviver com o portador de transtorno mental de diferentes maneiras. Se, por um lado, os familiares cuidadores podem ser homogeneizados em sua condição de vida e na forma como enfrentam os desafios cotidianos, por outro lado há muita riqueza nos encontros.

Mas, mesmo nas reuniões semanais, uma das principais dificuldades é assegurar a presença dos familiares. A sobrecarga das tarefas domiciliares, sobretudo para o cuidador do portador de transtorno mental, que tende a ser o único cuidador direto no grupo, e as dificuldades econômicas da família explicitamse na alta rotatividade nas reuniões. Alguns serviços disponibilizam vale-transporte para o cuidador doméstico comparecer a elas, mas é raro algum deles manter freqüência semanal, apesar de as considerar importantes e participarem ativamente delas.

Por outro lado, as dificuldades com transporte nos serviços psiquiátricos, sobretudo nos hospitais, a lógica de organização de muitos deles e a sobrecarga dos profissionais impedem um trabalho mais sistemático na comunidade, no espaço doméstico, na rede de relações sociais do portador de transtorno mental, que corre o risco de ficar em segundo plano. Nesse sentido, os centros de atenção psicossocial têm inovado no trabalho com a família, com as associações de moradores, com as rádios comunitárias, com grupos de mulheres e com conselhos de políticas públicas.

Embora tais intervenções sejam fundamentais, a família demanda um preparo para o cuidado doméstico ao portador de transtorno mental e para enfrentar suas próprias questões, múltiplas e multifacetadas. A necessidade de atendimento à família na assistência psiquiátrica A abordagem da família é um encargo de toda a equipe dos serviços de assistência psiquiátrica. Nenhum profissional pode deter monopólio ou exclusividade.

Tem-se observado que cada serviço ou equipe se organiza de maneira própria para abordar a família. Historicamente, nos hospitais psiquiátricos o assistente social era o principal encarregado das questões relacionadas à família, possivelmente porque os pacientes geralmente eram pobres. Tudo o que não
era da alçada estritamente clínica era remetido ao assistente social. Ainda hoje ocorre esse entendimento.

Em alguns centros de atenção psicossocial, como no caso estudado por Ramos (2003) no Ceará, o assistente social é considerado pelas equipes como o “profissional da família”. Geralmente, o interesse pessoal de determinado profissional, a capacitação individual de cada agente e a condição de classe da unidade familiar têm definido quem se sente apto ou desejoso de trabalhar com a família.

Quando se identifica o aparecimento de um PTM no seio de uma família, ocorre um momento de crise, uma ruptura de rotinas, um conflito de papéis, pois cuidar de uma pessoa adulta, dependente, em geral está fora do previsto na história do grupo e de seu repertório de respostas. A família tem que reconstruir sua unidade, aprender a se relacionar com o transtorno mental, com os serviços de saúde mental e com a linguagem dos técnicos, que geralmente não estão preparados para dialogar com a população que não teve acesso à educação formal.

Nos serviços comunitários abertos, com internação parcial, de início se supõe maior interação da família com o serviço psiquiátrico, posto que o portador de transtorno mental permanece no máximo de sete a oito horas por dia na instituição, retornando no final da tarde para seu domicílio. No Piauí, há uma chamada para reunião com familiares uma vez por semana, com duração média de uma hora. No hospital psiquiátrico, no regime de internação integral, a reunião com a família, em geral, apresenta menor número de participantes. Já nos serviços com internação parcial, a participação de familiares é sempre maior.

Nessas reuniões, várias questões são observadas. Embora chamadas de reuniões de família, freqüentemente agregam cuidadores, pessoas que, no interior do grupo familiar, são responsáveis pelos cuidados diretos do portador de transtorno mental. No geral esse cuidador é a única pessoa da família a se encarregar desses cuidados.

Outro aspecto que chama atenção é a presença feminina no grupo de familiares/cuidadores, constatada nas reuniões nos serviços de saúde mental. Historicamente, as mulheres ficaram identificadas com o trabalho de cuidar dos outros, tanto na esfera privada quanto na pública. Não são raros os homens nessas reuniões, mas comparecem sempre em pequena quantidade. Nesse sentido, parece ser natural atribuir à mulher tal incumbência, por caber-lhe também os papéis de engravidar e amamentar.

CONTINUA

Texto de Lúcia Cristina dos Santos Rosa -A inclusão da família nos projetos terapêuticos dos serviços de saúde mental (Psicologia em Revista)

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